Notas soltas sobre o Absurdo

Parte I
i) O absurdo é uma sensação, não uma realidade objectiva.
ii) A sensação de Absurdo decorre da incompreensão de um acontecimento ou de um facto. Em situações mais extremas decorre da não aceitação do acontecimento ou do facto, mesmo que as respectivas causas tenham explicação conhecida. Esta não aceitação é causada pelo sofrimento do sujeito, que num acto de revolta, suspende a lógica para insultar a Realidade.
iii) O Absurdo pressupõe a existência de Harmonia (regularidade, previsibilidade, causalidade).
iv) O Absurdo está para a Harmonia como o Caos está para a Ordem. Esta relação traduz um isomorfismo entre dois sistemas, um mais dinâmico (Absurdo-Harmonia) e outro que pode ser estático (Caos-Ordem).
v) Harmonia e Ordem são extrapolações de uma percepção digerida.
vii) A sensação de Absurdo é inevitável, na medida da limitação da nossa capacidade de percepção.
viii) A existência do sujeito é para si o primeiro Absurdo, porque recai sobre o centro da percepção (o “Eu”) e não está em si o percepcionar a própria origem. Isto é extensível à filogénese.
ix) Resultamos de um dispositivo mecânico da matéria que a leva a organizar-se e a reproduzir-se. É insuficiente para satisfazer os vapores da transcendência que emanam do frenesim das células.
x) O embaraço causado pelo absurdo de existir induz, numa forma análoga, mas inversa da suspensão da lógica atrás referida, o estabelecimento de ficções que remetam para mais longe a questão da origem.
xi) Este expediente é gerador/potenciador de uma infinidade de outros absurdos: todos os factos que desalinham/desarmonizam com o propósito ou padrão (a narrativa). “Um facto é a coisa mais obstinada do mundo”. Os factos não se importam com os padrões.
xii) A aparente resolução do Absurdo da existência por meio do estabelecimento de um propósito cria outro Absurdo que é o da existência do propósito ou, recuando um passo, da existência do criador do propósito.
xiii) Neste sentido, Deus fica com a “batata quente” do Absurdo. Mas não se fala nisso, pois ao atribuir-lhe astuciosamente a infinitude, todas as causas e efeitos são absorvidos por ela.
xiv) Para conter o Absurdo, é preciso analisá-lo do lado de fora da gaiola/jaula/aquário, já que ele é um processo de sensações, logo interno, a indivíduos ou a sociedades (o que é absurdo para uns pode não ser para outros).
xv) O universo não é lógico nem razoável no sentido que damos a estes adjectivos. Talvez por isso chamemos forças às leis que o governam e não razões.
Parte II: Sísifo e o Artista da Fome
xvi) A sensação de Absurdo do labor de Sísifo vem da dificuldade de encontrar um sentido numa repetição perpétua tida como inconsequente. No Artista da Fome, é o absurdo de existir e consumir-se sem proveito.
xvii) A existência não tem necessariamente um sentido. Quem quiser que a sua existência tenha um sentido, terá que o criar (o homem-que-cria), ou, pelo menos, aceitar o que eventualmente outrem lhe atribua (o homem-que -mantém).
xviii) A pedra de Sísifo é a sua ligação com um sentido. É como o fio de Ariadne.
xix) O jejum do Artista da Fome é a sua afirmação sobre o mundo.
xx) Do incessante rolar e rebolar da pedra, embora possa dizer-se: “é repetitivo e não muda nada” (embora isto seja uma questão de escala de observação), é no movimento incessante e alternado que acontece um diálogo silencioso entre Sísifo e o mundo, feito de afirmações completamente verdadeiras: o peso e a forma da pedra, a inclinação da encosta, o atrito das superfícies, a força muscular, a resistência do chão, a força da gravidade, as velocidades ascendente e descendente, a aceleração, a inércia.
xxi) Do jejum do Artista da Fome, embora visto como mera exibição de penitência, poderá dizer-se que se cumpre no que afirma sobre mundo e a sua comida.
xxii) O Eclesiastes (o Pregador) assinalou a eterna repetição de toda a actividade humana (e natural). No fim era tudo um vazio e um correr atrás do vento – Cap 1 e 2. O Eclesiastes é uma intrusão da perspectiva do Eterno Retorno numa literatura – a Bíblia – e numa matriz cultural – judaico-cristã – que preconiza uma trajectória histórica linear (princípio-meio-fim), em que tudo vem de uma origem (Alpha) e converge para um propósito final (Ómega). O Eclesiastes acaba por concluir que o melhor é gozar as coisas boas da vida (2:24 e 3:12-13), mas com juízo (7:15-22 e 11:9-12:8).
xxiii) O Absurdo não está na Pedra, mas na perda da Pedra. Não está no jejum, mas nas refeições que o empresário do Artista da Fome lhe impingia.
xxiv) Temos que existir a rolar pedras. São o material que está ao nosso dispor. E temos braços e pernas para as levar encosta acima.
xxv) No fim de tudo, quer rolemos pedras, quer construamos cidades, tudo desaparecerá (afinal, há pelo menos uns segmentos lineares no curso do tempo cíclico).
xxvi) É tão legítimo perguntar ao Sísifo porque é que ele insiste em rolar a pedra montanha acima como a toda a civilização humana porque insiste em dominar a natureza.
Parte III: Revolta ou Resignação?
xxvii) Nem uma coisa nem outra. Quer uma quer outra implicam a existência de um alguém que impõe o que acontece. À escala do concreto, estes alguéns existem em muitos casos. À escala do geral e abstracto, há só um movimento perpétuo onde flutuamos, com alguma capacidade de nadar.
xxviii) Esta capacidade de nadar é a nossa margem de criação, decisão e acção, sobre o dado adquirido e inevitável do mar.
xxix) Contrariamente ao que se poderia pensar, a capacidade de nadar só termina com a morte. Mas esta não é absurda.
Post-scriptum:
Prive-se o homem-que-mantém das suas ligações e ele buscará febrilmente outras a que se agarrar: por insignificantes que sejam, ei-lo a aparar a relva, metafórica ou não, do quintal que lhe resta, na esperança de a ver crescer de novo.
Prive-se o homem-que-cria da trama que o rodeia e será como uma mudança de roupa, uma alteração de paisagem em benefício de outras exclamações: uma página em branco, uma tela virgem.

Entre as Brumas

(vi)

Não sabe porque o trouxeram ali. A grande caixa de madeira é içada para o interior de uma cova cercada por montes de terra. Tapam-na, consumindo os montes, em movimentos maquinais. Há um som cavo que se repete. Suave, suave, como a invocar o sono. Boceja.

(v)

As paredes da sala são de um cinzento mudo. Nelas movem-se sombras, síncronas dos homens vestidos de igual. Um deles faz-lhe muitas perguntas, minudências de história e geografia que nada lhe dizem. «Onde mora», «de onde veio», «quando saiu de casa». Um palimpsesto de mapas de estradas atropela-se-lhe diante do olhar desfocado, desenhando vias rápidas no rosto do inquiridor. Não é essa a pergunta, diz para si, não é isso que interessa, não vê? Mas o homem vestido de igual aos outros não sabia, como podia saber, do caminho enviesado que no fio do instinto seguira e logo perdera no nevoeiro do presente voraz? A pergunta é: porquê a ausência que esvazia o mundo? Que interessam sítios e datas, quando todos os lugares e todos os dias são iguais? Não, o homem vestido de igual aos outros não podia saber.

(iv)

Nem ele próprio sabia já da trajectória ínvia que calcorreou, entre avenidas e baldios. Nem de como se guiara por imperceptíveis sons metálicos, com qualquer coisa de choque de talheres, que os seus ouvidos resgatavam de entre babilónias de ruído. Ou por fios de aroma açucarado, que distinguia sob um arvoredo e certas vozes e palavras, lançadas ao vento depois de trituradas.

(iii)

Como começara a corrida? Havia uma porta, sim, uma porta e um homem, também ele vestido de igual a outros. Este homem era como outra porta, sempre fechada. Mas houve um estrondo e gritos no lado de lá da porta e o homem-porta desapareceu, deixando abertas todas as portas. O vazio alastrava, tornando o espaço igual e devorando as linhas que desenhavam os lugares. Saiu então, deixando atrás de si o reboliço que não vira, seguindo o rasto de um perfume que enchia o mundo, até ao lugar onde o sol se abate sobre as coisas.

(ii)

Antes disso, só o vazio. Os ponteiros do relógio deixaram de dizer coisa com coisa. A sala, de paredes brancas, já não era precisa. O vazio enchia o espaço. E a cabeça. Doía, a explodir. O corpo, um maquinismo obsoleto. Olhou para as mãos sem saber o que fazer com elas. Nos olhos e ouvidos, uma sede insuportável.

(i)

Carmem faz 71 anos. A sua figura é baça, os gestos acusam desistência e reumatismo. Mas, neste momento, todo o olhar está concentrado na pesagem dos ingredientes para um bolo: o seu bolo de aniversário. Que irá levar ao lugar onde está e não está, António, seu companheiro, desde que se lembra.

Ausente, nos seus delírios insondáveis, António desliza por caminhos solitários dentro da cabeça. Nem a visita de Carmem, religiosa e pontual, a cada dia, o faz querer voltar ao mundo doce e tranquilo que ela lhe deu.

 

Ela continua a fazer o bolo, envolve por fim a farinha na massa fofa de ovos, açúcar e manteiga. Um bolo simples, numa altura em que não se pedem artifícios – o olhar, o toque, uma palavra afectuosa bastam. O resto da vida foi prova de amor suficiente. O bolo está no forno. Agora, dá brilho ao rosto, um pouco de rouge, e bâton. A écharpe nos ombros. O bolo sai do forno, arrefece um pouco enquanto procura a carteira e a enche com tudo aquilo de que não vai precisar.

Pelo caminho, o coração de Carmem cede, sob o peso esmagador de um enfarte.

Ao fim dessa tarde, António sai pela porta principal do hospício em busca de qualquer coisa perdida.

Ele não sabia, como podia saber?

Sado – fotografias de Bruno Elias

O Sado, em boa parte, permanece oculto por força da exuberância do seu próprio estuário e da assimetria geográfica entre as regiões da nascente e da foz. Essa mesma assimetria motivou este trabalho, que, não pretendendo fazer uma documentação sistemática, mantém, no entanto, a ordem geográfica do fluxo na sequência das imagens, cuja localização é assinalada em legendas individuais e em mapa na última página. É um percurso pessoal que nasce do espanto pela constatação das múltiplas identidades de um rio com o qual se mantém um convívio tão intenso como localizado.

As imagens colhidas pelo Bruno Elias convidam-nos a parar e suspender a avidez de sensações rápidas, que nos nossos dias marca o passo em toda a actividade humana.

Aqui temos um rio que começa incerto, em terras aplanadas pela erosão, na confluência de riachos já mansos à nascença. Podemos espreitá-lo através de matagais densos ou adivinhá-lo, oculto, sob tapetes de plantas aquáticas. Somos convidados a atravessá-lo sobre um pontão de madeira improvisado ou sobre a estrutura metálica de uma ponte levadiça.

Nas margens podemos ver hortas ou pilares de obras inacabadas. E experimentar o silêncio que a por vezes imperceptível corrente permite.

Para ver devagar.

 

Pontos de venda:

Livraria Uni Verso, Rua do Concelho, Setúbal

Livraria Hémus, Rua Serpa Pinto, Setúbal

Visor pelo mail jonatas@krrastzepy.pt